Uma pesquisa recente demonstrou como Lychnorhiza lucerna, uma das espécies de águas-vivas mais abundantes da costa brasileira, desenvolve e passa por uma série de mudanças em seus mecanismos de natação e alimentação. O trabalho foi realizado no Instituto de Biociências e no Centro de Biologia Marinha, ambos da USP, em parceria com pesquisadores norte-americanos do Marine Biological Laboratory. Foi utilizada uma câmera de alta velocidade, capaz de captar até mil quadros por segundo, para registrar o comportamento desses animais. Desse modo, movimentos que ocorrem no intervalo de um piscar de olhos foram "desacelerados", possibilitando a compreensão da mecânica e da dinâmica do funcionamento das estruturas corporais desses animais. (1)

As grandes águas-vivas também chamadas de cifomedusas estão entre os maiores invertebrados marinhos. Algumas espécies podem medir dois metros de diâmetro e pesar até 200 quilos, enquanto outras podem ter tentáculos de mais de trinta metros de comprimento! No entanto, mesmo as maiores espécies iniciam sua vida nos mares como jovens águas-vivas - as éfiras -, que possuem formato de estrela e medem poucos milímetros. As éfiras são originadas a partir de pequenos pólipos, denominados cifístomas, que vivem fixos no fundo do mar (sobre rochas ou outros substratos rígidos). As cifístomas dividem seu corpo para produzir as éfiras, que são lançadas ao sabor das correntes e se desenvolvem gradualmente até se transformarem nas grandes águas-vivas. (Figura 1 - e veja também: https://www.youtube.com/watch?v=5dLmAqP6g7s)

 

Figura 1

Figura 1. A - Éfira de Lychnorhiza lucerna. escala 1 mm. B - Cifístoma de Cassiopea xamachana. C -  Formação dos vórtices pela medusa de Lychnorhiza lucerna. D - Esquema do mecanismo de filtração dos braços orais. E Acartia tonsa, um copépode que facilmente escapa da medusa Lychnorhiza lucerna. F. Temora turbinata, um copépode que eventualmente é capturado pela medusa.

Assim como qualquer organismo, o início da vida de uma éfira é um momento crítico, pois é essencial explorar o ambiente, encontrar alimento e escapar dos predadores. Além disso, a resistência da água impõe um desafio aos movimentos e à locomoção desses pequenos animais. Quanto menor o organismo, maior a força da resistência da água, e para animais milimétricos o meio fluido é muito viscoso (parecido com um óleo espesso ou o mel). Dessa forma, quase todo impulso gerado pelos movimentos natatórios é rapidamente freado. Ao nadar, as éfiras dobram o corpo, ficando com o formato de guarda-chuva invertido e, em seguida, se fecham bruscamente, gerando um deslocamento para frente. Logo após a contração, a resistência da água rapidamente desacelera o organismo. Por isso, para se locomover, as éfiras pulsam muito rapidamente (até 5 pulsações por segundo) e quase nunca param de pulsar.

A medida que a éfira cresce e passa a adquirir o formato típico da água-viva adulta, seu padrão de natação também muda (vídeo suplemento 1: http://www.int-res.com/articles/suppl/m557p145_supp/). Em águas-vivas maiores, a tendência de deslizar e manter o movimento (inércia), passa a ser mais importante para a locomoção do que as forças de resistência da água. Assim, logo após ser impulsionada pela contração do corpo, ao relaxar, a água-viva  desliza por mais tempo, percorrendo uma distância maior. Portanto, as águas-vivas maiores pulsam menos (cerca de 2 pulsações por segundo) do que as éfiras. Embora nadem em velocidades baixas, as águas-vivas são campeãs em eficiência energética de locomoção (2). Essa maneira “econômica” de nadar tem inspirado a Marinha dos Estados Unidos a desenvolver robôs que um dia poderão patrulhar os oceanos para realizar diversas funções, como a retirada de lixo, o monitoramento das condições ambientais e até mesmo a espionagem (3). O maior desafio desse projeto é tornar a água-viva robô autossuficiente, por meio da utilização de combustíveis disponíveis em pequenos animais marinhos, por exemplo. 

Uma característica peculiar do modo natatório das águas vivas é que ao pulsar forma-se um redemoinho atrás delas: uma corrente de água circular chamada vórtice. Esses vórtices transportam água em direção aos braços orais da medusa, que são as estruturas de formato cônico que capturam pequenos organismos do plâncton. Dessa forma, as pulsações das águas-vivas têm uma dupla função: gerar o impulso locomotor e bombear água para que os braços orais capturem o alimento. Esse sistema permite “filtrar” um enorme volume de água, o que é essencial, pois no mar o alimento geralmente encontra-se muito disperso.

Embora os organismos do plâncton sejam geralmente menores do que um milímetro, não é nada fácil para as águas-vivas captura-los. Principalmente quando se trata de copépodes, crustáceos muito pequenos e extremamente rápidos, que realizam saltos impressionantes para escapar. Durante esses saltos, que duram poucos centésimos de segundos, os copépodes podem atingir velocidades de cerca de 50 centímetros por segundo e rapidamente se distanciar de seu predador. Porém, mesmo com tal capacidade de fuga, os copépodes são muitas vezes o principal alimento para muitas espécies de águas-vivas. Mas como as águas-vivas, com seu padrão de pulsação suave, conseguem se alimentar de presas tão rápidas? Com o auxílio da câmera de alta velocidade foi possível verificar que, de fato, a maioria dos copépodes não tem dificuldade de fugir quando uma água-viva se aproxima (vídeo suplemento 3: http://www.int-res.com/articles/suppl/m557p145_supp/). No entanto, existem duas situações em que as águas-vivas são bem sucedidas: quando os copépodes não percebem a aproximação delas e são levados pelos vórtices para os braços orais; ou quando os copépodes detectam a aproximação da medusa, mas saltam de encontro aos braços orais, onde são capturados. O vórtice gerado pela medusa provavelmente confunde os copépodes, que ao fugirem saltam justamente em direção ao predador (vídeo suplemento 5: http://www.int-res.com/articles/suppl/m557p145_supp/). Portanto, para o copépode conseguir sobreviver não basta ser extremamente rápido, é preciso perceber a aproximação do predador e fugir para o lado contrário.

As águas-vivas existem desde mais de 500 milhões de anos atrás, muito antes do surgimento da maioria dos outros organismos que hoje habitam os mares. Ao longo desse tempo, o formato básico do corpo desses animais mudou muito pouco. Apesar de serem considerados organismos “simples”, por não possuírem órgãos ou um cérebro, as águas-vivas são extremamente resistentes e podem proliferar sob diversas condições consideradas inóspitas, como sob baixos níveis de oxigênio ou em locais poluídos. Este estudo descreveu detalhes do desenvolvimento dos mecanismos de locomoção e alimentação de uma dessas espécies e com isso foi possível melhorar a compreensão de como esses animais exploraram os ambientes em que vivem.

1 - Nagata RM, Morandini AC, Colin SP, Migotto AE, Costello JH. 2016. Transitions in morphologies, fluid regimes, and feeding mechanisms during development of the medusa Lychnorhiza lucerna. Marine Ecology Progress Series, 557: 145–159. Disponível em: http://www.int-res.com/abstracts/meps/v557/p145-159/

2 - Gemmell BJ, Costello JH, Colin SP, Stewartd CJ, Dabiri JO, Tafti D, Priyad S. 2013. Passive energy recapture in jellyfish contributes to propulsive advantage over other metazoans. Proc. Natl Acad. Sci. 110, 17904–17909. . Disponível em: http://www.pnas.org/content/110/44/17904.abstract

3- Angley, Natalie. Robotic jellyfish could be undersea spy. CNN, May 8, 2013. Disponível em: http://edition.cnn.com/2013/05/08/tech/innovation/robotic-jellyfish/

 

Veja mais imagens da água-viva Lychnorhiza lucerna no Cifonauta - Banco de Imagens de Biologia Marinha: http://cifonauta.cebimar.usp.br/taxon/lychnorhiza-lucerna/

 

Renato Mitsuo Nagata
Instituto de Oceanografia
Universidade Federal do Rio Grande (FURG)
Rio Grande, RS Brazil