A expressão espécie cosmopolita é usada na biologia para designar uma espécie com ampla distribuição geográfica em todos os oceanos. O conceito de espécie criptogênica, por sua vez, refere-se a espécies cuja região de origem é desconhecida. E um terceiro conceito, o de espécie invasora, é empregado para espécies encontradas fora de sua área natural de distribuição (espécie introduzida ou exótica) e que passam a causar prejuízos biológicos e econômicos nos novos locais em que se estabelecem.

Esses três termos – cosmopolita, criptogênico e invasor – são aplicados a muitas espécies, algumas vezes simultaneamente. Isso ocorre porque é comum não se saber ao certo a região de origem de espécies com ampla distribuição.

Embora possível, é pouco provável que uma espécie seja naturalmente cosmopolita, isto é, tenha ampliado demasiadamente sua distribuição em todos os oceanos por mecanismos naturais ao longo de sua história evolutiva. A ciência vem mostrando pelos menos duas possibilidades para muitas dessas situações aparentemente paradoxais. Primeiro, que a “espécie” não foi identificada corretamente, representando, de fato, várias espécies semelhantes que, por várias razões, não foram reconhecidas e acabaram sendo registradas com o mesmo nome. Segundo, que a interferência humana nos habitats naturais fez com que muitas espécies se alastrassem para muito além da sua área de origem.

 

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Figura 1. As colônias de Amathia verticillata são eretas, não ramificadas, esbranquiçadas e translúcidas, formadas por estolões que se ramificam várias vezes. Elas têm um aspecto gelatinoso que lembra alguns tipos de macarrão, sendo assim denominadas (spaghetti bryozoan) popularmente em alguns lugares. Às vezes, pelo tamanho e aspecto geral, são confundidas com algas esbranquiçadas. 

A. detalhe do estolão com zooides; B. detalhe da extremidade distal de uma colônia; C. colônia crescendo em píer, Ilhabela, SP, comprimento total da colônia cerca de 2m; D. colônias fixas ao costão rochoso, fotografadas durante a maré baixa, São Sebastião, SP.

 

Espécies terrestres e de água doce vêm sendo introduzidas, deliberadamente ou não, fora de suas áreas naturais pelo ser humano há muitos milênios. É fácil imaginar o quanto atuamos para a introdução de espécies em locais onde elas não ocorriam antes, sobretudo com relação a animais e plantas domesticados, necessários à nossa sobrevivência, às pragas transportadas acidentalmente, e muitas outras que são mais evidentes e visíveis para nós. Mas como isso se daria no mar? Sobretudo com relação às espécies sésseis, que vivem fixas no fundo?

As espécies marinhas começaram a viajar pelo mundo “de carona”, aderidas aos cascos das embarcações dos primeiros navegadores a cruzar grandes distâncias, muitas centenas ou milhares de anos atrás. Contudo, o número de espécies marinhas introduzidas ao redor do globo aumentou estrondosamente nos últimos cem anos aproximadamente, com o crescente aumento do fluxo de transporte marítimo. Mas foi somente nas últimas décadas que os cientistas se deram conta do tamanho e extensão do problema, e passaram a detectar algumas das espécies recentemente estabelecidas em determinados locais em que não ocorriam até certo tempo atrás.

Todavia, muitas espécies marinhas aumentaram sua área de distribuição por meios não naturais (ou um misto de meios naturais e não naturais) muito antes dos primeiros levantamentos faunísticos. Dessa forma, quando passaram a ser registradas nesses locais não foram reconhecidas como espécies introduzidas, sendo rotuladas como cosmopolitas ou de ampla distribuição geográfica.

Entre os briozoários há muitas espécies que são tradicionalmente ditas cosmopolitas. O filo abarca uma grande riqueza de espécies predominantemente marinhas e que formam colônias fixas a um substrato, onde passam toda a vida. Responsáveis pela dispersão da espécie, as larvas produzidas pelos briozoários nadam livres na água do mar, embora geralmente por um tempo relativamente curto, não suficiente para se distanciarem muito da colônia mãe. Como muitas espécies de briozoários podem desenvolver suas colônias em substratos flutuantes, imagina-se que distâncias maiores, como de um lado a outro do Oceano Atlântico, por exemplo, poderiam ser percorridas se as colônias estivessem fixas a materiais flutuantes (troco de árvores, frutos, algas) que são naturalmente transportados pelas correntes marinhas.

Amathia verticillata é um desses briozoários comuns e com distribuição ampla nas regiões tropicais e subtropicais de todos os oceanos. Nesse caso da espécie, há vários registros de ocorrência relativamente antigos, alguns feitos mais de cem anos atrás, em locais muito distantes entre si. Suas colônias grandes e conspícuas são frequentes perto de portos, em substratos dos mais variados, incluindo boias e cascos de embarcações. Com uma distribuição tão ampla e com muitos registros de ocorrência antigos, não é fácil determinar o local de origem da espécie e as possíveis rotas pelas quais se dispersou pelo globo.

Seria Amathia verticillata uma única espécie que se alastrou naturalmente, carregada por organismos flutuantes até ocupar tantos e variados lugares do mundo? Ou será que esse processo foi facilitado pela ação do ser humano?

Em um artigo recentemente publicado, Nascimento et al. (2021) realizaram análises de regiões específicas do DNA de colônias de Amathia verticillata de diferentes localidades do mundo (EUA, Austrália, México, Itália e Espanha), além de diversos locais ao longo da costa do Brasil. Essas regiões do DNA podem indicar se Amathia verticillata representa mais de uma espécie. Mas podem dizer também se as diferentes populações amostradas são geneticamente muito próximas entre si, sugerindo eventos de introdução recente, possivelmente por ação antrópica. Por outro lado, se essa região do DNA for suficientemente diferente entre as populações, pode ser porque que elas migraram naturalmente, de maneira gradual, formando populações geneticamente distintas.

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Figura 2. Distribuição geográfica de Amathia verticillata. Os triângulos azuis correspondem a locais amostrados por Nascimento et al. (2021). Os círculos vermelhos correspondem aos locais onde há registros de ocorrência na literatura especializada, desde 1807 (Andalusia, Espanha) até a atualidade.

 

As análises realizadas por eles apontam que Amathia verticillata é de fato uma única espécie em todas as localidades na qual foi amostrada, e que sua ampla distribuição é resultado de processos dispersivos relativamente recentes, uma vez que a variabilidade genética encontrada foi muito baixa, indicando que a espécie vem se alastrando rapidamente.

Por ser largamente encontrada em regiões próximas a portos e em cascos de navios e plataformas de petróleo, imagina-se que o histórico de caronista dos oceanos de Amathia verticillata é muito antigo. Além disso, como ela se reproduz rapidamente por brotamento e é resistente a mudanças de salinidade e temperatura, consegue suportar e sobreviver às amplas variações ambientais a que estão sujeitas durante às longas viagens. A baixa variabilidade genética entre as populações corrobora, portanto, que Amathia verticillata é uma espécie cosmopolita (ou neocosmopolita, isto é, uma espécie que alcançou uma distribuição geográfica muito ampla por meio de processos históricos de dispersão mediados por ação humana, veja Darling & Carlton 2019). Uma vez que ela continua chegando a novas localidades, vem sendo registrada como invasora nesses locais. Mas como não se conhece ainda em que região ela se originou, nos locais onde foi encontrada há muito tempo (muitas décadas ou centenas de anos) é simplesmente designada como criptogênica.

Para descobrir a região geográfica da qual Amathia verticillata é nativa, é necessário um esforço amostral grande, que abarque a maior parte dos locais onde em que se estabeleceu. Isso exige uma enorme força tarefa, envolvendo a colaboração de pesquisadores de todo o mundo. Enquanto isso não acontece, essa questão permanece um mistério.

As espécies invasoras podem causar inúmeros problemas. Elas competem por espaço e alimento com espécies nativas e, sem predadores naturais, podem dominar o ambiente, modificando o ecossistema e prejudicando a fauna local. Além disso, muitas também causam prejuízos econômicos variados, quando afetam espécies economicamente exploradas, entopem tubulações de usinas, crescem sobre redes e outros artefatos de pesca, e infestam embarcações, entre outros. Ambos os tipos de problemas têm sido observados com relação a Amathia verticillata.

Entender a distribuição natural das espécies e seus processos de dispersão ajuda-nos a compreender o que faz com que certas espécies se tornem invasoras, possibilitando antecipar e evitar possíveis introduções de espécies, bem como a criar mecanismos que evitem ou reduzam os danos biológicos e econômicos causados por elas.

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Leia o artigo completo: Nascimento, K.B., Migotto, A.E. & Fehlauer-Ale, K.H. Molecular data suggest the worldwide introduction of the bryozoan Amathia verticillata (Ctenostomata, Vesiculariidae). Mar Biol 168, 33 (2021). https://doi.org/10.1007/s00227-021-03837-8.

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Karine Nascimento concluiu seu Doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Zoologia pela Universidade de São Paulo em dezembro de 2019. Atualmente, com o apoio do CNPq, dá continuidade à sua pesquisa iniciada no doutorado, a qual visa revisar a taxonomia e as relações filogenéticas de um gênero de briozoários com base em caracteres morfológicos e moleculares.

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Para saber mais:

Darling JA, Carlton JT (2018) A framework for understanding marine cosmopolitanism in the Anthropocene. Front Mar Sci 5:293. https://doi.org/10.3389/fmars.2018.00293.

Kapel, K. 2017. De olho na invasão. http://noticias.cebimar.usp.br/pt/c634.

Luz, B. 2020. As diversas formas reprodutivas e de ciclo de vida que fazem do coral-sol uma espécie invasora bem-sucedida. http://noticias.cebimar.usp.br/pt/c73c.

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Veja mais imagens de Amathia verticillata (= Zoobotryon verticillatum) no Cifonauta: banco de imagens de biologia marinha - http://cifonauta.cebimar.usp.br/taxon/zoobotryon-verticillatum/?&page=2