Os nudibrânquios, popularmente conhecidos como lesmas marinhas, são moluscos gastrópodes sem concha quando adultos. A ausência da concha pode dar a impressão de que são animais frágeis e desprotegidos, quando na verdade possuem um variado e eficiente arsenal contra predadores: defesas químicas; coloração de advertência; mimetismo; incorporação e utilização de estruturas e toxinas das presas para a sua própria proteção, entre outros. Ao que tudo indica, essas estratégias são bastante eficientes, uma vez que os nudibrânquios são raramente predados. Porém, mesmo sendo poucos, os predadores existem, como alguns crustáceos, outros gastrópodes e picnogônidos – popularmente conhecidos como “aranhas-do-mar”.

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Exemplar de Spurilla braziliana proveniente da Baia do Araçá, São Sebastião, SP, medindo cerca de 4 cm de comprimento. Note as inúmeras projeções sobre o dorso e laterais do animal, denominadas cerata.

Algumas espécies de picnogônidos são predadoras, enquanto outras são parasitas de nudibrânquios. Estas interações, contudo, são pouco estudadas e costumam ser pobremente ilustradas. Em um artigo recentemente publicado, Sales et al. (2021) reportam pela primeira vez, com fotos e vídeo, o nudibrânquio Spurilla braziliana como presa do comparativamente pequeno picnogônido Pigrogromitus timsanus, que, até então, nunca havia sido visto alimentando-se de moluscos.

Durante uma expedição de coleta na Baía do Araçá, em São Sebastião, foi observado em um exemplar de S. braziliana o picnogônido P. timsanus. O espécime adulto estava bem camuflado (foto abaixo, à esquerda) entre as projeções digitiformes, denominadas cerata (no singular, ceras), que se distribuem no dorso e laterais do nudibrânquio. A presença do pequeno predador só foi notada ao examinar-se o exemplar ao microscópio, o que propiciou também verificar que o picnogônido se alimentava do nudibrânquio sugando o conteúdo das cerata pela base (foto abaixo à direita). Mas por que isso sempre ocorria na base das cerata?!

 

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Spurilla braziliana pertence a um grupo de nudibrânquios que se alimenta de cnidários e armazena as estruturas microscópicas urticantes (os nematocistos) de suas presas na ponta das cerata, para utilizá-las em sua própria defesa. Desse modo, ao alimentar-se pela base das cerata, o picnogônido pode estar tentando ficar longe dos nematocistos, “burlando” assim o mecanismo de defesa do nudibrânquio.

O fato de P. timsanus ter permanecido e se alimentado do nudibrânquio por cerca de dez dias, poderia ser interpretado como parasitismo. Entretanto, considerando que um parasita é um organismo que se alimenta de um único hospedeiro durante pelo menos todo um estágio de vida, e que espécimes adultos de P. timsanus já foram reportados alimentando-se de outros organismos, a interação observada entre P. timsanus e S. braziliana pode ser qualificada como um caso de micropredação. Micropredadores são organismos que se alimentam de mais de uma presa durante um estágio de vida, sem necessariamente matar ou prejudicar a presa. Alguns exemplos de outros organismos considerados também como micropredadores incluem pernilongos e cigarrinhas.

Há muito ainda para se descobrir sobre os hábitos alimentares e mecanismos de defesa de picnogônidos e nudibrânquios, bem como sobre as intricadas e complexas relações que as espécies desses grupos estabelecem entre si e com vários outros organismos. O registro de uma aparentemente simples interação ecológica pode desencadear estudos que levem à compreensão destes e de outros aspectos desses fascinantes animais.

Veja o vídeo: The pycnogonid Pigrogromitus timsanus feeding on the nudibranch Spurilla braziliana.

Leia o artigo completo: Oliveira, Licia Sales; Araújo, Vinicius Queiroz; Lucena, Rudá A.; Migotto, Alvaro Esteves. An unprecedented observation of the nudibranch Spurilla braziliana (Gastropoda: Aeolidiidae) as a food resource of the pycnogonid Pigrogromitus timsanus (Arthropoda: Ascorhynchoidea). The Nautilus, v. 135, n. 1, p.  32-34, 2021. (Acesse o Researchgate e solicite uma cópia para a autora)


Saiba mais:

Sales, L. Nudibrânquios, os musos do mar. Bate papo com Netuno.  25 Fev 2021.

Pontes, M. Not all nudibranchs are carnivores.OPKOpistobranquis, 25 jul.2020.

Holland, J.S. As cores vivas dos Nudibrânquios. National Geographics, Jun. 2021.

Padula, V. 2014. Nudibrânquios: taxonomia e diversidade na costa brasileira. Informativo Sociedade Brasileira de Zoologia, n. 109,jun. 2014, p. 5-7.


Licia Sales concluiu o Mestrado e Doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Zoologia, na Universidade de São Paulo (USP). Estuda os moluscos nudibrânquios desde a graduação na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Tem dedicado sua carreira ao estudo de diferentes aspectos desses animais: anatomia, morfologia funcional, hábitos alimentares, desenvolvimento e estratégias reprodutivas.