O litoral norte de São Paulo, durante os meses de primavera e verão, pode receber águas bem frias, que têm origem em processos conhecidos como ressurgências costeiras. A ressurgência é o resultado da ação dos ventos e correntes que trazem águas distantes e profundas em direção à superfície e à costa. Além de frias, o que às vezes surpreende quem nada ou mergulha num dia quente de verão, essas águas são ricas em nutrientes e estimulam o crescimento de microalgas marinhas que, assim como as plantas terrestres, realizam fotossíntese. Nesse verão de 2025, a presença de águas frias no litoral norte de São Paulo foi, de fato, notada em alguns locais. Porém, ainda mais surpreendente, foi o aparecimento de extensas manchas vermelhas no mar, conhecidas popularmente como “marés vermelhas”. As marés vermelhas ocorrem quando há um acúmulo elevado de microalgas pigmentadas, alterando a cor da água. A fonte dessa coloração é o conjunto de pigmentos que esses organismos possuem nos cloroplastos dentro das células, que facilitam a absorção de luz para realizar a fotossíntese.

As manchas foram observadas no litoral norte por diversas embarcações e também por moradores locais no dia 12 de janeiro, e continuaram sendo reportadas em pontos distintos até o dia 27. Quando amostras dessas manchas foram levadas ao laboratório e observadas com um microscópio no Centro de Biologia Marinha (CEBIMAR) da USP, no dia 15 de janeiro, foram identificadas altas densidade, não de microalgas, mas de um pequeno protozoário (seu tamanho corresponde a menos de 0,1 milímetro de diâmetro), um ciliado chamado Mesodinium rubrum. Esse organismo é extremamente interessante. Como muitos outros no plâncton marinho, ele funciona como uma planta, ou seja, pode realizar fotossíntese (autotrófico) e, ao mesmo tempo, se alimentar de outros seres (heterotrófico). Por isso, é classificado como um organismo mixotrófico.

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Mesodinium rubrum ao microscópio: “de lado”, “de cima”, e utilizando uma técnica chamada fluorescência, que destaca os cloroplastos em vermelho. Os organismos estão fixados com um preservativo químico, que muda um pouco o seu formato real. Vivo, ele é extremamente ativo, com uma natação intensa.

 

A história de vida do Mesodinium rubrum é ainda mais fascinante, pois ele depende das pequenas microalgas das quais se alimenta (criptófitas) tanto para obter energia como para “roubar” os seus cloroplastos e, assim, conseguir fotossintetizar. A água do mar fica avermelhada durante as marés (florações) de Mesodinium rubrum porque os cloroplastos que ele rouba das criptófitas contêm pigmentos avermelhados. E a história não termina aqui. Mesodinium é o principal alimento de outro organismo microscópico, igualmente mixotrófico e “ladrão de cloroplastos”: o dinoflagelado Dinophysis. Dessa forma, Dinophysis poderia formar uma floração na sequência da floração de Mesodinium, já que teria alimento em abundância. Essa interação e interdependência entre criptófitas, Mesodinium e Dinophysis já foi registrada em várias regiões do mundo, inclusive nas costas sul e sudeste brasileiras. Enquanto Mesodinium não produz toxinas, Dinophysis pode produzir uma toxina que pode causar intoxicações em humanos que consumirem pescados que acumulam esses organismos ao se alimentarem filtrando a água do mar, como os mexilhões, por exemplo. De fato, uma extensa floração tóxica de Dinophysis aconteceu entre maio e julho de 2016, em toda a faixa litorânea de Santa Catarina a São Paulo, levando ao primeiro embargo comercial na produção e no consumo de ostras e mexilhões por autoridades sanitárias do estado de São Paulo. Assim, no caso de Mesodinum em particular, seu monitoramento pode ser um mecanismo de alerta para as potenciais florações de Dinophysis.

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Maré vermelha observada por uma embarcação no início do evento e espuma formada ao final.

 

Mesmo não sendo tóxicos, o acúmulo exacerbado de biomassa de Mesodinium rubrum durante as extensas florações observadas pode gerar problemas ao final do ciclo de vida dos organismos, quando as células morrem e bactérias decompositoras entram em ação. O excesso de atividade bacteriana sobre a matéria orgânica que se deposita no fundo e nas praias ainda consome oxigênio dissolvido da água, e pode até entupir as brânquias de alguns organismos. Estas bactérias liberam compostos que promovem mau cheiro, algo que foi notado neste último final de semana nas praias. Foi também observada mortandade de peixes numa praia de Ilhabela, cuja causa ainda precisa ser esclarecida pelas agências responsáveis e laboratórios certificados.

Ao longo do evento, as manchas puderam ser acompanhadas por imagens de satélite (Sentinel-3/OLCI). Uma nota técnica com essas imagens foi publicada no site do INPE (https://www.gov.br/inpe/pt-br/assuntos/ultimas-noticias/inpe-monitora-evento-de-mare-vermelha-no-litoral-norte-de-sao-paulo).

Além disso, as manchas foram acompanhadas com a ajuda de um grande número de pessoas (lista em anexo) que estavam em embarcações de locais, do CEBIMar e do ICMBio. Essas pessoas, possibilitaram coletas de água,  um número elevado de registros por fotos e vídeos e confirmações de posição e horário das manchas,  informações  essenciais  para a interpretação correta do que se “vê” nas imagens de satélite.

Assim, é muito importante que existam programas de monitoramento contínuo das florações de microalgas ou organismos mixotróficos utilizando múltiplas estratégias de observação, já que o ambiente marinho é muito dinâmico. No litoral norte de São Paulo,  em particular no verão, as florações podem ser incentivadas, pois a região pode receber “injeções” de nutrientes por múltiplas fontes (ressurgência, chuvas e esgoto), às vezes todas ao mesmo tempo. No verão, é quando temos um número maior de pessoas transitando pelo mar em embarcações, mergulhando e indo às praias. Assim, o risco é maior, mas também é maior a oportunidade de envolvimento cidadão, desde que nos organizemos para isso.


Agradecimentos

Houve muitas trocas de informações via celular ao longo desses dias, entre os pesquisadores e funcionários do CEBIMar, INPE, ICMBio, Fundação Florestal (APAMLN e  Parque Estadual de Ilhabela) e CETESB, mas não teríamos conseguido acompanhar o evento sem o apoio das pessoas abaixo:  

Avistamentos por mar: Ballerina (Julio Cardoso - Projeto Baleia à Vista); Capitão Ximango e Ximanguinho (Gustavo Luis Benedito dos Santos); FlyFishing (Larissa Pantanal e Octavio Campos Sales); Santa Clara (Aurelio Santos); Batucadão (Julien Bibiano); Adonai III (Batucada-Luan Patreze)

Vídeos durante mergulho: Octavio Campos Sales

Observações em terra: Divan (DK sup)