Pouco mais de 13 mil quilômetros e 20 horas de viagem separam o Centro de Biologia Marinha da Universidade de São Paulo (CEBIMar) do Instituto de Biologia Marinha da Universidade do Havaí (HIMB, na sigla em inglês). Estas vastidões de espaço e tempo foram vencidas no último mês de junho pelo pós-doutorando do CEBIMar Marcelo V. Kitahara, para participar de um tradicional encontro científico que envolve profissionais e estudantes do mundo todo em discussões sobre um tema específico de Biologia Marinha.

O “Edwin W. Pauley Summer Program in Marine Biology” é um programa de pesquisa e ensino que anualmente, desde 1983, lança um tópico para ser abordado na forma de seminários e treinamentos práticos em novas metodologias de laboratório e de campo. O objetivo principal do programa é incentivar a colaboração entre estudantes e pesquisadores de destaque no cenário científico e assim, promover o avanço da Biologia Marinha.

 

O Hawai’i Institute for Marine Biology (HIMB) está localizado em Mokuoloe, uma ilha rodeada por recifes de coral na baía de Kaneohe, no estado norte-americano do Havaí. Foto: HIMB.

 

O tema escolhido para este ano foi a utilização de técnicas avançadas de genômica e bioinformática no estudo da biodiversidade e evolução do Filo Cnidaria, principalmente corais. Até recentemente, os estudos moleculares em corais eram limitados a algumas poucas sequências de DNA, ditas marcadoras. Entretanto, o extraordinário progresso alcançado pela tecnologia de sequenciamento do DNA na última década tem proporcionado elucidar grandes porções dos genomas de diferentes espécies de coral a um custo e esforço similar àquele utilizado poucos anos atrás para sequenciar alguns pequenos e restritos marcadores. Esta nova abordagem tem se demonstrado uma ferramenta eficaz na reavaliação do entendimento convencional sobre a evolução e filogenia dos cnidários.

Assim, ao final das seis semanas de duração do evento, os organizadores pretendem que as atividades realizadas em cada grupo de trabalho possam gerar publicações em periódicos científicos especializados.

 

Pauley: do petróleo ao fomento à ciência

O nome do evento que contou com a participação de Kitahara remete a uma figura importante das cenas política e acadêmica norte-americanas: Edwin Wendell Pauley (1903-1981).

Após obter seu título de Mestre em Ciências pela Universidade da Califórnia em Berkeley, Pauley fez fortuna como empresário do ramo da indústria petroquímica a partir de meados dos anos 20 do século passado. Envolveu-se com a política, chegando a ser tesoureiro do Partido Democrata norte-americano e a exercer influência junto ao então presidente Harry Truman, o que o levou a ser nomeado embaixador dos Estados Unidos no Comitê Aliado de Reparação, uma comissão internacional constituída para planejar a reconstrução dos países devastados pela Segunda Guerra Mundial.

 

Edwin W. Pauley foi assessor presidencial norte-americano em reuniões com chefes de estado como Winston Churchill e Josef Stalin. Foto: Edwin W. Pauley Foundation.

 

A atuação política e empresarial não afastou Pauley da vida acadêmica. Ele foi reitor da Universidade da Califórnia por 32 anos e depois de aposentado dedicou-se a ações filantrópicas, como a implantação do Instituto de Biologia Marinha do Havaí, o HIMB, na sua ilha particular, posteriormente doada à Universidade do Havaí. Após sua morte, sua viúva criou a Fundação Edwin W. Pauley para dar prosseguimento ao trabalho filantrópico, como o provimento de fundos para a construção de laboratórios e de uma nova biblioteca no HIMB, em 1995.

 

Corais ou não, eis a questão

Kitahara foi convidado a participar do 29º “Edwin W. Pauley Summer Program in Marine Biology” para apresentar e discutir seu trabalho sobre as relações filogenéticas entre duas ordens de cnidários: Scleractinia, que compreende os verdadeiros corais ou corais-pétreos – animais que secretam um rígido esqueleto externo de calcário que compõe grande parte dos recifes de águas rasas e profundas –, e Corallimorpharia, chamados corais-falsos – seres que se assemelham aos corais-pétreos, mas que, entre outras pequenas diferenças, possuem tentáculos usualmente mais curtos e não têm um exoesqueleto calcário.

Estes dois grupos foram recentemente considerados como um único pelo que convencionalmente se chamou “hipótese dos naked corals”, ou “corais-nus”, em tradução livre. De acordo com esta hipótese, um coral-pétreo ancestral perdeu seu esqueleto calcário em algum momento ao longo da sua história evolutiva devido à acidificação dos oceanos, diversificando-se após este ocorrido nos atuais Corallimorpharia, os “corais-nus”. Dessa forma, Corallimorpharia deveria ser considerado um grupo de corais-verdadeiros que, apesar disso, não formam um esqueleto calcário.

Tal conclusão foi elaborada com base no fato de que alguns representantes de Scleractinia são mais aparentados com coralimorfários do que com outros próprios corais escleractíneos, conforme indicaram análise de sequências de proteínas oriundas de genes mitocondriais.

 

Phyllangia (Scleractinia), à esquerda, e Corynactis (Corallimorpharia), à direita, possuem entre 2 e 4 milímetros de tamanho e se alimentam capturando minúsculos organismos com seus tentáculos urticantes. Fotos: Marcelo Kitahara e Kátia Capel.

 

Entretanto, com base numa abordagem mais abrangente de metodologias e aumento significativo de espécies estudadas, Kitahara e seus colegas acreditam que esta hipótese deva ser reconsiderada. Seus dados indicam que Scleractinia e Corallimorpharia são monofiléticas, contradizendo, portanto a “hipótese dos naked corals”.

A empolgante discussão sobre se e como uma linhagem ancestral de corais-pétreos teria perdido, há muitos milhões de anos, a capacidade de formar o esqueleto calcário externo ganha relevância nos tempos atuais, quan do toneladas de CO2 lançadas pela humanidade na atmosfera e absorvidas pelos oceanos causam a acidificação da água do mar, dificultando a síntese de estruturas calcárias, o que pode comprometer a sobrevivência de inúmeras espécies calcificadoras, como os corais-pétreos.

A participação de Kitahara no 29º “Edwin W. Pauley Summer Program in Marine Biology”, além de render a divulgação do seu trabalho a pesquisadores de várias partes do mundo, possibilitou sua estada no Havaí, um dos principais roteiros turísticos internacionais, que oferece aos visitantes não só ondas gigantes, vulcões ativos e dança do ula-ula, mas também o estudo de genômica e filogenia de corais.

 

Glossário

filogenia – relações de parentesco entre grupos de organismos, considerando-se as condições de ancestralidade e descendência ao longo da sua evolução.

gene mitocondrial – gene de um organismo eucarioto localizado no material genético das mitocôndrias.

genoma – toda a informação hereditária de um organismo que está codificada em seu material genético, como o DNA.

genômica – área do conhecimento que estuda o genoma dos organismos, sua organização e função biológica.

monofilético – condição de um grupo de organismos que inclui uma determinada espécie ancestral e todas as suas espécies descendentes.

sequenciamento – determinação da ordem sequencial de nucleotídeos em uma molécula de DNA ou de aminoácidos em uma proteína.

sequências marcadoras – regiões da molécula de DNA ou de proteínas que diferenciam dois ou mais indivíduos ou grupos de organismos.

 

Para saber mais

Edwin W. Pauley Summer Program in Marine Biology: http://www.hawaii.edu/himb/Education/Pauley.html

Instituto de Biologia Marinha do Havaí (HIMB): http://www.hawaii.edu/himb/index.html

Currículo Lattes do pesquisador Marcelo V. Kitahara: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?metodo=apresentar&id=K4753823Z6

Edwin W. Pauley Scholarship: http://pauleyscholarship.org/

Artigo sobre os corais-nus no site do National Museum of Natural History: http://www.mnh.si.edu/highlight/coral/

Rede de informações Lophelia sobre corais profundos: http://www.lophelia.org/

Artigo sobre os corais profundos no site Ocean Portal do National Museum of Natural History: http://ocean.si.edu/deep-sea-corals