Professor Ludwik Fleck (1896 - 1961). Imagem de fleckzentrum.ethz.ch.
Professor Ludwik Fleck (1896 - 1961). Imagem de fleckzentrum.ethz.ch.

A nossa ciência contemporânea, muito especialmente a ciência brasileira, vem confrontando uma crise pública da verdade. Segundo o jornal Folha de São Paulo, entre outubro de 2017 e fevereiro de 2018 (período precedente às eleições presidenciais), páginas de notícias falsas e sensacionalistas chegaram a uma taxa de interações aumentada em quase 62%, enquanto que o jornalismo profissional perdeu 17%. Notícias espúrias, no entanto, não são exclusivas das mídias digitais, mas também emblemáticas do Palácio do Planalto ao Kremlin e Salão Oval, ambientes esses que criam e movimentam o nocivo mercado das fake news diante de assuntos como a efetividade das vacinas, o uso de medicamentos ou as mudanças climáticas. Qual a lógica em se advogar por medicamentos sem comprovação científica e atacar a eficácia das vacinas já histórica e cientificamente validada? Quais as razões para a liberação de centenas de agrotóxicos, para o flerte deliberado com companhias de mineração e para a desestruturação de órgãos ambientais?

A divulgação de inverdades nessas temáticas deriva, muito especialmente, de interesses empresariais (como setores da agropecuária e das indústrias petrolífera e farmacêutica), de comitês ideológicos ou de algumas organizações religiosas, os quais estão contaminados por diversos conflitos de interesses. Do outro lado da força, tem-se a verdade informada, esta que sinonimiza ‘o consenso atingido criticamente pela comunidade científica’. Consenso porque ciência é um empreendimento coletivo, uma visão sociológica que vem, mais claramente, desde a década de 1930 com o médico Ludwik Fleck, polonês emigrado para Israel com trabalhos seminais no estudo da febre tifoide e sífilis e, sobretudo, com profícuas reflexões sobre filosofia da ciência. Ele é autor do termo alemão “Denkkollektiv”, ou “o pensamento coletivo” na tradução em português, para designar o complexo processo de interações sociais e de troca de ideias na construção do conhecimento. Como curiosidade, Fleck fora preso e enviado ao campo de concentração de Auschwitz onde trabalhou no diagnóstico de variadas doenças via testes serológicos. Ainda assim, ele jamais perdeu o delicado balanço sináptico e sistólico com que enxergou a comunhão entre epistemologia e medicina e, mais amplamente, entre ciência e sociedade.

A professora de história da ciência da Universidade de Harvard nos EUA, Dra. Naomi Oreskes, sintetizou o pensamento científico, a atividade coletiva e a verdade informada em um parágrafo interessante [em minha compreensão e tradução livres]: “Cientistas estão engajados em, cuidadosamente, estudar o mundo natural. A dimensão empírica é crítica porque o conhecimento é coletivamente organizado, proveniente de práticas sociais variadas de correção, autocríticas e não-defensivas”. Disso entendemos que aquilo que a ciência nos coloca é resultado de atividades coletivas, organizadas em instituições grupais como revistas e sociedades científicas, universidades e/ou centros de pesquisa. Assim, evidencia-se um caráter genuinamente social em detrimento de uma natureza majestática da ciência: o conhecimento como verdade consensual, e não como produto absolutista de mentes geniais com paradigmas incompreensíveis.

Por fim, tal caráter coletivo da comunidade científica, tanto do ponto de vista metodológico quanto sob o prisma idiossincrático, funciona como um mecanismo basilar de proteção à nossa sociedade. Assim como sabemos que florestas e vira-latas são mais tolerantes às doenças que monoculturas e raças caninas puras, a diversidade das comunidades científicas aumenta o potenc0ial de detecção de pressupostos não-examinados, de verificação de pontos cegos, bem como de consideração de vieses herdados no processo de construção de conhecimento. Essa diversidade de pensamentos interdisciplinares, e com lastro em um dossiê de práticas e protocolos internacional e historicamente padronizados, aumenta as chances de se identificar e desafiar crenças disfarçadas de teorias científicas, protegendo-nos da pandemia das inverdades. Enquanto indivíduos somos potencialmente falhos, mas socialmente organizados somos capazes de plantar a palavra de Fleck para poder conhecê-la ainda maior, frutífera e frondosa. Em tempos obscuros como agora, conhecer dessa sombra é a melhor forma de, paradoxal e verdadeiramente, nos libertar.