O Brasil possui uma das maiores extensões costeiras do mundo, com mais de 8.000 km de litoral. Nessa vasta extensão, encontram-se diversos ecossistemas marinhos, incluindo os recifes de corais, caracterizados por uma rica diversidade de espécies, abrigando cerca de 25% da biodiversidade marinha! Embora no Brasil existam poucas espécies de corais recifais, com apenas 16 espécies identificadas, a maioria delas é endêmica, ou seja, exclusiva de nossas águas.
O ambiente marinho está sujeito a diversos estressores, como o aumento da temperatura da água em decorrência das mudanças climáticas. Os corais são particularmente sensíveis a esse aumento – como tem sido amplamente noticiado nos últimos meses –, resultando no fenômeno do branqueamento. Há uma relação mutualística entre corais e microalgas fotossintetizantes (conhecidas como zooxantelas), que dão as cores vibrantes aos corais. Durante anomalias térmicas da água do mar, essas microalgas aumentam suas atividades metabólicas, produzindo compostos nocivos aos corais. Para se protegerem, os corais expulsam as zooxantelas e perdem, portanto, sua cor, ficando com um aspecto branqueado. Se o branqueamento persistir por muito tempo, pode levar à morte dos corais, pois além das microalgas fornecerem as cores, por meio da fotossíntese suprem também a maior parte dos nutrientes que os corais precisam para sobreviver. Além do branqueamento, há uma crescente preocupação com o crescente surgimento de doenças de corais, muitas associadas à elevação da temperatura da água do mar.
A maior diversidade de corais no Brasil é encontrada na região Nordeste. Na costa de São Paulo, ocorrem duas espécies, que apresentam amplas distribuições geográficas no Atlântico Sudoeste: Madracis decactis (coral-estrela) e Mussismilia hispida (coral-cérebro). No Arquipélago de Alcatrazes, em São Sebastião, o coral-cérebro é muito abundante, ocupando até mais de 50% do substrato em algumas localidades. Apesar de a região estar frequentemente sob influência de massas d’águas mais frias, às vezes ocorrem eventos de anomalia térmica, ou seja, um aumento abrupto da temperatura média da água do mar.
Colônias de coral-cérebro no Arquipélago de Alcatrazes, uma unidade de conservação federal conhecida como Refúgio de Vida Silvestre do Arquipélago de Alcatrazes, administrada pelo ICMBio. (Foto: Marcelo Kitahara)
Em fevereiro de 2019, uma forte onda de calor atingiu o Arquipélago de Alcatrazes. A temperatura da camada superficial até cerca de 11m de profundidade chegou a 32ºC, ocasionando branqueamento moderado em cerca de 18% das colônias de Mussismilia hispida, o coral-cérebro. Concomitantemente, observou-se que cerca de 2% da população desse coral no arquipélago estava doente.
Branqueamento de colônias de coral-cérebro no Arquipélago de Alcatrazes após aumento da temperatura da água do mar (Foto: Marcelo Kitahara)
Apesar de o índice de mortalidade decorrente do branqueamento do coral-cérebro ter sido baixo em Alcatrazes, a incidência de doenças é mais ameaça à espécie. Atualmente as cerca de 20 doenças de corais registradas no mundo afetam mais de 160 espécies de corais, por vezes ocasionando mortalidade em massa. Por isso, decidimos estudar a doença que afetou o coral-cérebro da região, procurando identificar a sua natureza e investigar o conjunto de bactérias associado às colônias, o que chamamos de microbioma ou comunidade microbiana (veja abaixo).
Quanto ao aspecto visual, a caracterizamos como doença da Praga Branca: as colônias apresentavam perda de tecido, algumas exibindo uma faixa esbranquiçada de tecido bastante evidente entre as partes saudáveis e mortas; as lesões tinham tanto o formato linear, partindo da base da colônia, quanto circular, surgindo do centro dela; a demarcação entre as partes saudáveis e mortas também era nítida, e em alguns casos, até mesmo algas estavam crescendo na parte morta da colônia, onde o esqueleto do coral já não possuía mais tecido, ou seja, estava exposto. Tais características também estão presentes em uma doença altamente mortal que surgiu no Caribe, conhecida como SCTLD, que causa perda de tecido e pode dizimar várias espécies de corais em um curto período. A doença observada em Alcatrazes distingue-se da SCTLD pela baixa incidência e por infectar apenas o coral-cérebro.
Colônia de coral-cérebro apresentado sinais da doença da Praga Branca. Na imagem podemos ver que metade do coral está aparentemente saudável, com tecido e cor preservada. Há uma faixa esbranquiçada, característica da doença no meio da colônia, enquanto a outra extremidade da colônia está morta.
Ao analisarmos o microbioma das colônias afetadas pela Praga Branca, notamos que o grupo de bactérias conhecido como Bacteroida era significativamente mais abundante nas porções doentes, enquanto o grupo Alphaproteobacteria predominava nas partes saudáveis. Esse padrão de mudança na composição do microbioma já havia sido observado em outras espécies deste gênero de coral, como a Mussismilia harttii e a Mussismilia braziliensis, quando afetadas por outras doenças nos recifes da região Nordeste. No entanto, observamos que cada colônia respondeu de maneira única à doença, apresentando uma grande variação nos grupos de bactérias presentes – o que não é uma grande novidade quando falamos de microbioma de corais doentes. Um grupo de cientista propôs o Princípio de Anna Karenina para explicar esse fenômeno, partindo da seguinte frase “todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. Em outras palavras, enquanto os microbiomas de indivíduos saudáveis de uma mesma espécie tendem a ser semelhantes, o microbioma associado a doenças mostra uma grande diversidade na composição bacteriana. Essas alterações, conhecidas como desequilíbrio da comunidade microbiana, ou disbiose, podem criar um ambiente favorável para o crescimento de bactérias oportunistas, que podem se tornar patogênicas.
Embora não tenhamos identificado bactérias específicas como os patógenos responsáveis pela doença, análises estatísticas revelaram diferenças na composição bacteriana entre as partes saudáveis e doentes das colônias. Notavelmente, encontramos 29 gêneros de bactérias distintos nos dois estados de saúde. Alguns desses gêneros, como Roseimarinus, Carboxylicivirga, Tepidibacter, Vallitalea e Halodesulfovibrio, já foram associados a doenças de corais com alto índice de mortalidade, como a Síndrome Branca e a SCTLD, que ocorrem principalmente no Caribe.
Apesar de ser o primeiro registro de uma doença afetando um coral endêmico na região sudeste do Brasil, observamos uma notável semelhança entre o microbioma das colônias afetadas e as doenças de coral do Caribe. Ainda não compreendemos completamente por que os mesmos tipos de bactérias estão presentes em diferentes espécies de corais doentes. No entanto, é provável que o desequilíbrio na comunidade microbiana, tenha permitido que bactérias oportunistas afetassem o coral de maneira semelhante ao que ocorre com corais doentes do Caribe. Contudo, é importante destacar que, apesar de termos identificado a doença no Arquipélago de Alcatrazes, ela atingiu uma pequena parte da população do coral-cérebro e não afetou a outra espécie que também habita a região, o coral-estrela. Com essas descobertas, esperamos informar e alertar tanto a população quanto os órgãos competentes sobre uma potencial ameaça aos corais no estado de São Paulo.
MICROBIOMA, o que é?
Antes de explicar o conceito, já adianto: você, seus amigos, suas plantas, o solo, a água, seu cachorro e todos os animais têm um microbioma.
Para falar sobre o assunto, podemos usar o termo microbioma, microbiota, comunidade de microrganismos, microrganismos simbiontes entre outras variações.
Mas afinal, o que é microbioma? Bom, chamamos de microbioma, o conjunto de microrganismos que vivem em um ambiente ou um hospedeiro. E quando falamos de microrganismos, nos referimos as bactérias, aos vírus, fungos e archaeas, organismos muito pequenos e invisíveis ao olho nu. Ou seja, você, caro leitor, possui uma variedade de microrganismos que vivem dentro do seu corpo, seja no estômago, no intestino, na pele, na boca. Eles são altamente diversos e estão em completa harmonia com você.
Muitos estudos indicam que a comunidade de microrganismos que vivem associados aos hospedeiros é crucial para a saúde e que essa relação é muito benéfica. No entanto, quando algo sai do controle e desequilibra essa relação, pode resultar em doenças e infecções para o hospedeiro. A pesquisa sobre microbiomas é uma área em crescimento, e entender essas comunidades de microrganismos pode ajudar a melhorar não somente a nossa saúde como a de outras espécies.
Leia o artigo completo sobre esse estudo:
Zanotti, A.A., Capel, K.C.C. & Kitahara, M.V. 2024 Microbial characterization of the first occurrence of White Plague disease in the endemic brain coral Mussismilia hispida at Alcatrazes Archipelago, Brazil. Coral Reefs:https://doi.org/10.1007/s00338-024-02499-4.
Saiba mais:
Zanotti, Aline. A doença do coral sol: um vislumbre de esperança em um dos maiores casos de bioinvasão marinha já documentado. CEBIMar Notícias, 18 maio 2021. Disponível em: http://noticias.cebimar.usp.br/pt/acervo-e-comunicacao/divulgacao-e-educacao-cientifica/artigos/1853-a-doenca-do-coral-sol-um-vislumbre-de-esperanca-em-um-dos-maiores-casos-de-bioinvasao-marinha-ja-documentado.
Banha, T.N.S., Capel, K.C.C., Kitahara, M.V. et al. Low coral mortality during the most intense bleaching event ever recorded in subtropical Southwestern Atlantic reefs. Coral Reefs 39, 515–521 (2020). https://doi.org/10.1007/s00338-019-01856-y
Aline Aparecida Zanotti é mestre e doutora pelo Programa de Pós-graduação em Sistemas Costeiros e Oceânicos da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em parceria com o Centro de Biologia Marinha da USP (CEBIMar), sob a orientação do Prof. Dr. Marcelo V. Kitahara. Sua pesquisa foca no estudo do microbioma de corais, tanto de águas rasas quanto profundas, investigando os aspectos adaptativos e evolutivos dessa relação simbiótica. Além disso, realiza estudos sobre as doenças que afetam os corais, contribuindo para a compreensão e conservação desses organismos.