Mudanças climáticas, satélites e as cores do oceano

Nos últimos anos, temos vivenciado e acompanhado relatos sobre as mudanças climáticas em decorrência do aquecimento do planeta. Eventos de inundações, secas, deslizamentos de terra, queimadas e ondas de calor, por exemplo, têm se tornado cada vez mais frequentes e intensos. Embora seja mais fácil notarmos essas mudanças em terra, onde vivemos, o oceano, que cobre cerca de 70% da superfície do nosso planeta, também está sendo afetado. Em decorrência das mudanças climáticas, atualmente é possível detectar uma crescente elevação do nível do mar, alterações na circulação oceânica, aumentos na temperatura do oceano e acidificação de suas águas. Em especial, estima-se que o oceano armazene cerca de 90% do calor retido na Terra devido ao excesso de gases do efeito estufa! Essa realidade traz grandes desafios para a humanidade devido ao papel fundamental do oceano na provisão de alimentos e matérias-primas, no comércio marítimo e na regulação do clima.

Para nos adaptarmos a essa situação desafiadora, precisamos compreender melhor as consequências das mudanças climáticas no oceano. E para esta batalha, a humanidade ganhou recentemente uma nova e poderosa arma. No dia 08 de fevereiro de 2024, a NASA (órgão do governo federal dos Estados Unidos responsável pela pesquisa e exploração aeroespacial) realizou o lançamento do satélite PACE. O nome PACE vem de fitoplâncton (Phytoplancton), aerossol (Aerosol), nuvem (Cloud) e ecossistema oceânico (ocean Ecosystem).

Um dos maiores avanços da humanidade no último século foi o desenvolvimento dos satélites que nos permitem observar e estudar o planeta a grandes distâncias, olhando para ele de “cima”. Os satélites são como grandes câmeras fotográficas que capturam imagens da Terra. Diferentes formações na superfície, como cidades, florestas, plantações ou pastagens, possuem diferentes cores, pois interagem de formas distintas com a luz solar. Os satélites detectam essas diferentes cores, permitindo compreender características e mudanças nas áreas urbanas, naturais e agropastoris.

O mesmo princípio vale para a observação do oceano. Diferentes cores revelam importantes características, como a presença de sedimentos — tais quais partículas de areia — em suspensão na água. Mas para a vasta maioria da superfície do oceano, o que regula sua cor é a quantidade de fitoplâncton, grupo de pequenos organismos fotossintetizantes aquáticos, base das cadeias alimentares dos ambientes marinhos e os maiores produtores de oxigênio do nosso planeta. Diversos satélites que observam a cor do oceano já estiveram, e ainda estão em operação, e têm quantificado com sucesso “quanto” fitoplâncton está presente. Para fazer isso, analisamos as imagens para determinar quão “mais verde”, e ao mesmo tempo “menos azul”, cada pedacinho delas é. O princípio é o seguinte: o oceano é azul porque a luz azul penetra mais fundo na coluna d’água e se espalha o suficiente para ser refletida de volta para nossos olhos. Outras cores como o vermelho e o laranja são rapidamente absorvidas nas primeiras camadas do oceano. Assim, em áreas com mais fitoplâncton a água se torna mais verde — porque esses organismos, de forma geral, têm uma cor que reflete o verde — e, logo, menos azul. Devido a importância, principalmente, do azul e do verde no oceano, a maioria dos satélites medem poucas cores.

 

Belíssima imagem de satélite do litoral norte do estado de São Paulo, incluindo os municípios de São Sebastião, Ilhabela e Caraguatatuba. Note a diversidade de cores do oceano. Imagem do satélite Landsat 8 registrada no dia 7 de junho de 2019. Fonte: https://oceancolor.gsfc.nasa.gov/gallery/640/.

O que o PACE tem de tão especial?

Uma característica diferencial do PACE em relação aos demais satélites em operação é que ele é hiperespectral, dispondo de mais de 130 canais. Isto significa que ele detecta a luz refletida pelo oceano em intervalos de cores muito menores. Cada canal dentro do espectro pode ser compreendido como uma cor levemente diferente. Para exemplificar, o instrumento VIIRS, que foi lançado em 2011 para cumprir uma função similar à do PACE, captura a luz do oceano em apenas 5 canais! Com isso, o PACE tem potencial de revelar não apenas “quanto” mas também “tipos diferentes de fitoplâncton” baseado em pequenas diferenças nas cores. E por que isso é relevante? O conjunto das espécies de fitoplâncton presentes em determinado local depende de diversos fatores, como a quantidade de luz e nutrientes disponíveis, que são afetados pela temperatura do mar. Identificar os tipos de fitoplâncton e suas variações em diferentes lugares e ao longo do tempo traz informações estratégicas para a nossa sociedade. Veja na figura abaixo, por exemplo, a comparação de como o VIIRS e o PACE “enxergam” florações de algas nocivas e não-nocivas. Lembrando que florações de algas nocivas, também conhecidas como marés vermelhas, são crescimentos descontrolados de algas que produzem toxinas, causando grandes prejuízos para a pesca e a aquicultura e podendo causar a morte de pessoas que comerem peixes ou moluscos contaminados! Ter a capacidade de identificar esses fenômenos é crucial para evitarmos prejuízos econômicos e problemas de saúde pública. Saiba mais sobre algas nocivas aqui.

Comparação das cores detectadas pelo VIIRS e pelo PACE no caso de florações de algas nocivas ou não-nocivas. Cada ‘bolinha’ nessa figura representa uma cor levemente diferente. Enquanto o VIIRS consegue ‘enxergar’ apenas 5 cores, o PACE enxerga mais de 100! Os detalhes providos pelo PACE são incríveis e nos permitirão estudar o oceano com muito mais detalhes! (Figura adaptada de https://pace.oceansciences.org/about.htm).

Somado a tudo isso, o PACE captura imagens de todo o planeta a cada 2 dias. Essa capacidade de ampla cobertura em tão pouco tempo permite acompanhar mudanças no fitoplâncton em sintonia com as alterações do oceano resultantes das mudanças climáticas.

Quem é esse tal de fitoplâncton mesmo?

Nunca foi apresentado(a) aos diferentes grupos de fitoplâncton? Ou não se lembra mais? Sem problemas! Veja a página do Cifonauta que possui fotos e vídeos desses seres tão importantes (e bonitos!). Confira também a cartilha Plâncton: pequenos gigantes e o artigo Fitoplâncton: os super-heróis dos mares. Nas imagens abaixo, podemos ver alguns dos grupos mais comuns de fitoplâncton: as diatomáceas (A-B), as cianobactérias (C) e os dinoflagelados (D). Lembre-se: esses organismos são muito pequenos, por isso essas fotos foram tiradas usando microscópios e estão aumentadas em centenas de vezes. E, em alguns casos, precisamos de instrumentos mais poderosos, pois muitos organismos são menores do que pode ser visto com microscópios. 

Exemplos de grupos de fitoplâncton. (A-B) Diatomáceas. (C) Cianobactérias. (D) Dinoflagelados. Crédito das imagens: Banco de Imagens de Biologia Marinha Cifonauta 2.0 (https://cifonauta.cebimar.usp.br/). 

Do local ao global: O PACE, as águas do litoral paulista e a Década do Oceano

No Centro de Biologia Marinha da Universidade de São Paulo (CEBIMar/USP), pesquisadoras(es) do Laboratório Aquarela estudam há 13 anos o oceano que banha a costa brasileira. Atualmente, um dos projetos de pesquisa desenvolvido neste laboratório, auxiliado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP Proc. 2021/13367-6), busca ampliar a compreensão sobre as características do oceano ao longo da costa paulista, já empregando o uso de informações geradas pelo satélite PACE, incluindo coletas de dados, modelagem, disponibilização de bases de dados, ensino de pós-graduação e divulgação científica. Nesse projeto, características do fitoplâncton e da água do mar são medidas em campo, ou seja, feitas diretamente na água do mar, a bordo de embarcações para complementar e ajustar as informações obtidas dos satélites. Em especial, esse projeto ajudará a compreender melhor as características das águas no entorno do Arquipélago de Alcatrazes e seu contraste com o observado próximo à costa, no canal de São Sebastião. As informações sobre as cores do oceano serão importantes para a gestão dessa Unidade de Conservação no sentido de identificar variações oceanográficas que possam afetar as biotas locais e atividades sustentáveis ali desenvolvidas, como avistamento de mamíferos marinhos e mergulho.

Pesquisadoras(es) do Laboratório Aquarela durante trabalho de campo em novembro de 2024 nos entornos do Arquipélago de Alcatrazes. Fonte: Memorial do Laboratório Aquarela.

No mundo todo, oceanógrafas(os) e outras(os) cientistas do mar estão entusiasmadas(os) com o lançamento do satélite PACE. Estamos vivendo a Década do Oceano (2021-2030), declarada pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), que visa mobilizar a comunidade global para a ciência e a gestão sustentável do oceano, promovendo a conservação e a geração de conhecimento para enfrentar desafios ambientais. Durante a Década, um dos sete resultados a ser alcançado é um oceano previsível, de forma que que a sociedade compreenda e possa reagir às alterações do oceano. Assim, como para a previsão do tempo, a previsibilidade do oceano depende de dados, logo o PACE vai ajudar muito atingirmos esse objetivo. 


Saiba mais:

A NASA possui um endereço eletrônico específico sobre o PACE com informações e atualizações. Desde abril de 2024, pouco mais de 2 meses após o seu lançamento, alguns dados derivados das imagens capturadas pelo PACE já estão disponíveis para o uso público. Para saber mais sobre o PACE, acesse: https://pace.oceansciences.org/about.htm

Ficou interessada(o) em saber mais sobre as cores do oceano? Confira também o e-book Por que o mar tem essa cor? e a matéria Porque o mar é azul?


Sobre os autores:

André Pardal é pós-doutorando vinculado ao Laboratório Aquarela (CEBIMar/USP) e colaborador do Programa Maré de Ciência (Instituto do Mar/Universidade Federal de São Paulo - IMar/UNIFESP). Email: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

Ronaldo A. Christofoletti é professor no IMar/Unifesp, coordenador do Programa Maré de Ciência e colaborador do Laboratório Aquarela. Email: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

Áurea M. Ciotti é professora no CEBIMar/USP, coordenadora do Laboratório Aquarela e do projeto “Variações verticais das propriedades ópticas nas águas costeiras do estado de São Paulo e sua influência no sinal hiperespectral de sensoriamento remoto (FAPESP Proc. 2021/13367-6)”. Email: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.